Tuesday, 9 October 2007

#1

Quando bebo demais, a ponto de ficar ligeiramente "tocado" (prefiro dizer a ponto de ficar ligeiramente leve, é mais coerente com aquilo que se passa) às vezes levanto-me a meio da noite e apetece-me andar. Apetece dirigir-me a algum lado, nem sei bem onde, para onde, porquê. Simplesmente apetece. Quando estou sóbrio não me apetece nada. Às vezes, nem sair da cama. O pior, talvez, é que isso não me custa, não me dói, não me faz impressão. Estou bem na estagnação em que vivo, neste nada em que vou existindo, e isso incomoda-me, porque me dizem que é errado, porque me ensinam que é errado. Mas sinto-me bem assim. Sinceramente. Não me sinto bem por me encontrar sozinho - literalmente -, por não ter carta nem carro, nem poder sair regularmente para os sítios que me interessam, para os sítios que importam; não me sinto bem por ter vindo embora da faculdade, onde era aceite, onde me sentia integrado, onde podia vestir o que me apetecesse, sem ser olhado de lado, onde podia evoluir a minha escrita ao lado de pessoas que escreviam e que se interessavam genuinamente pela literatura, pela poesia, pessoas que, umas mais do que outras, pensavam como eu penso; não me sinto bem por não ter conversa para os meus pais, e ficar refeições inteiras a ouvir apenas o barulho dos talheres nos pratos, o barulho das gargantas a engolir a comida, o barulho absurdo do silêncio ou, de vez em quando, o ruído da rádio com interferências, que é tão melancólico e, em última análise, forçado; não me sinto bem com muitas coisas, mas não me importo de estar sem fazer nada, de dormir dias inteiros, de escrever, apenas, de ouvir música, ver filmes e, de vez em quando, ir tomar café com amigos e conversar um bocado. Não, ser inútil na sociedade não me incomoda, e é precisamente isso que me irrita. Incomoda-me o facto de não estar incomodado com isso. Talvez tenha criado este blog como um sítio onde possa chamar-me à atenção. Quero sobretudo usá-lo para reflectir e ponderar muitas coisas.

Sou franco: a realidade da minha vida tem muitas coisas lá misturadas que não são bem realidade. Tenho lembranças incrustadas que sei terem sido romanceadas, floreadas, em boa verdade, congeminadas e inventadas, simplesmente, mas essa parte romântica de mim mesmo é integral e tão real como as coisas mais factuais, essas recordações deixam em mim marcas e repercussões tão profundas e concretas, como as recordações das coisas que de facto existiram. Houve pessoas, ao longo da minha vida, que não souberam lidar com isso, em mim. Acharam-me mentiroso, doente, delirante, falso... acharam que não me conheciam, porque muito de mim não aconteceu. Isso é mentira. Eu sou tudo isso. Essas coisas aconteceram, no mais íntimo de mim, aconteceram, são reais na minha experiência de vida. Gostava que o meu coração - ou o âmago de mim, é essa a imagem que pretendo usar, com coração - fosse um alimento que as pessoas que amo pudessem comer, para que o saboreassem e pudessem, dessa forma, ter-me, inteiro, em si, perceber-me, aceitar-me. Muitas vezes sou eu quem se faz inaceitável, também o sei, e é também um ponto que espero vir a reflectir aqui.

Criei este blog porque me perguntaram, no Sábado passado, no fim de um concerto de orquestras, o que estou a fazer da minha vida. Respondi: "sou boémio". E é isso, sem tirar nem pôr, que sou e me sinto. É a única coisa para a qual tenho aptidão, jeito, vocação. É para estar em contacto com a miséria e a podridão das coisas e escrevê-las; é para ter muita auto-comiseração e tentar sair desse estado de angústia o tempo inteiro; é para desfrutar o prazer da noite, do álcool, do jazz, da companhia de alguns amigos mais próximos, de alguns pares; é para me afundar tanto, tocar quase no fundo e perceber que afinal ainda dá para descer mais, e entender que, por mais miserável que se esteja, podemos estar melhor do que algum dia, no futuro. Sou boémio sem carta de condução, sem carro, às vezes sem pessoas que me levem aos sítios onde queria e onde precisava de ir. Sou boémio sem dinheiro para mais do que dois copos de whisky, quando sai, mas é isso que eu sou. E devia dar para pôr isso como profissão nos perfis da internet.

2 comments:

joana said...

A tua profissão está na calha para ser inventada.
És boémio e és assim para o mundo: queiras ou não a ele pertences, mesmo que os dias passem por ti na cama. A tua vocação é mais e melhor que a maioria que vejo espelhada nos outros, os 'úteis', os 'contribuidores', os apenas 'contribuintes'.
Basta que se leia uma linha tua para se saber que faz sentido.
És um sentido, tens tanta razão em tanta coisa que faz mossa.
Desculpa-me a audácia de opinar, de te opinar, quando não te conheço para além dos teus textos, para além dos relatos da Joana, para além da admiração e amizade sem fim que ela te tem. Amor de alguém que te tem por, precisamente, fazeres tanto sentido.
És mais e maior por dentro do que a maioria.
A vida é um poço de merda, poucos conheço quem o reconhece.
Podes nem sequer ter uma pessoa preferida, mas os teus textos são o melhor que já vi.
Pela forma.
Pelo conteúdo. Porque o têm.
É com imenso prazer e deleite que te visito amiúde.

Um abraço desta que te lê.
O meu mundo faz algum sentido desde o dia primeiro (ou zero?) que 'te' pus a vista em cima.

Joana

aquelabruxa said...

nada de errado em ser boémio, eu adoro!